sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Os absurdos do igualitarismo 0. Como norma, todos os ismos nomeiam uma ideologia; e qualquer ideologia, como tal, não passa de um sistema fechado, que não admite matizes nem excepções. Aristóteles dizia que a igualdade perante a lei era a forma mais iníqua de governo. Não vamos aqui discutir os argumentos do grande filósofo grego, ao qual, quer se queira quer não, devemos em parte o que hoje somos como pessoas de cultura. Mas podemos dizer que o igualitarismo, finalmente transformado em ideologia obsessiva, depois de ter invertido o mito de Prometeu, está a levar ao paroxismo as tentativas do homem, no sentido de anular diferenças essenciais à harmonia da natureza e ao relacionamento do ser humano com ela. Nos meus tempos de criança e adolescente, ouvi muitas vezes os adultos, sobretudo pais de vários filhos, explicar as diferenças entre eles, espalmando a mão e dizendo: temos cinco dedos na mesma mão e são todos diferentes. Cinco dedos diferentes, que nunca ninguém de bom senso pensou em tornar iguais, ou cortando uns ou acrescentado outros: eram todos dedos da mesma mão, com a mesma dignidade, mas com funções diferentes, segundo os nosso hábitos culturais e civilizacionais. Não imagino o que diriam hoje, se vissem o que estamos a fazer à nossa sociedade, os revolucionários que, nos finais de século XVIII, salvaram as torres de Notre-Dame da fúria de quem quis deitá-las abaixo sob o pretexto de que negavam os princípios da Revolução: liberdade, igualdade, fraternidade. A ideologia igualitarista, com todas as suas ramificações, algumas tão subtis, que às vezes nem os mais atentos se dão conta delas, está a fazer um mal terrível até no interior de fortalezas que pareciam há pouco inexpugnáveis. Foi pensando nisso que decidi ocupar parte dos meus ócios oferecendo a quem me queira ler e comentar, se achar oportuno, mesmo que seja para contestar, algumas das reflexões que os estragos dessa ideologia me têm inspirado. Confesso: têm inevitavelmente a marca da idade; por isso as incluo nesta série de REFLEXÔES CREPUSCULARES. Ainda que, do ponto de vista da etimologia, crepuscular tanto possa referir-se à tarde como à madrugada, aqui é o entardecer que dá o tom e produz a dinâmica. E vai a primeira, partindo de um texto do Novo Testamento. 1. Será que devemos pôr-nos todos a coxear? Líamos há pouco, na liturgia da missa, estas palavras da Carta aos Hebreus: Por isso, levantai as vossas mãos fatigadas e os vossos joelhos direitos, para que o coxo não se desvie, mas antes seja curado (Hebr 12, 13-13). O contexto é a parte final da Carta, que, depois de sublinhar as diferenças entre o sacerdócio levítico e sacerdócio de Cristo, exorta longamente os cristãos a não se deixarem vencer pelas dificuldades, sobretudo as perseguições, que lhes vinham de todo o lado: dos pagãos, que os não distinguiam dos judeus, e destes, que os consideravam como renegados. Ainda que não seja evidente o sentido exacto da parábola, pelo contexto percebe-se que o autor sagrado tem em mente o efeito terapêutico da fidelidade de uns sobre a fraqueza de outros, que acusam especiais debilidades na luta por essa fidelidade. Extrapolando um pouco, diríamos que a pastoral subjacente ao texto da Carta, sem esquecer a ajuda a prestar aos mais débeis, se organiza na perspectiva da promoção dos mais fortes, no sentido de tirar da sua fidelidade ajuda e estímulo para os outros. Todos achamos normal que assim seja: tratar bem do são, para que o doente, não só se entusiasme, mas encontre novas forças, num ambiente melhorado, onde a exigência se transforma em amparo e força estimulante. O que já não é tão evidente é que essa seja a mentalidade reinante na actualidade, mesmo em instâncias que deviam ter mais presentes as palavras do texto sagrado. Às vezes temos a impressão de que, perante quem coxeia, nos recomendam que nos ponhamos todos a coxear, para que, dizem, ninguém se sinta discriminado.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Meditação da tarde No dia seguinte, que era o dia a seguir ao da Preparação, os sumos sacerdotes e os fariseus reuniram-se com Pilatos e disseram-lhe: «Senhor, lembrámo-nos de que aquele impostor disse, ainda em vida: ‘Três dias depois hei-de ressuscitar.’ Por isso, ordena que o sepulcro seja guardado até ao terceiro dia, não venham os discípulos roubá-lo e dizer ao povo: ‘Ressuscitou dos mortos.’ E seria a última impostura pior do que a primeira.» Pilatos respondeu-lhes: «Tendes guardas. Ide e guardai-o como entenderdes.» E eles foram pôr o sepulcro em segurança, selando a pedra e confiando-o à vigilância dos guardas (Mt 27, 62-66). Leio e fico a pensar: passa-me pela mente um sem-número de coisas que parecem não ter nada a ver com isto, Mas quando reparo no sentimento daqueles homens que, quase envergonhados dos seus medos, se retiram do sepulcro, não consigo evitar uma reflexão: Os inimigos do Senhor fazem tudo para que Ele desapareça e a sua recordação não dure mais que a memória de um acidente no percurso da própria história, que não estão dispostos a alterar, pelo menos na linha que parecia ser a indicada pelas palavras e os gestos “daquele sedutor”, como lhe chamam. E foi uma pena, porque o medo continua a dominar os seus espíritos. Pior: agarrados à ideia de que aquele condenado, morto e sepultado, não passava de um sedutor, tudo o que depois aconteceu com a sua marca, mesmo quando encerrava desvios muito graves do caminho por Ele traçado, era mau, contrário à Lei divina. Estamos ainda sob os ecos das armas que mataram em Paris e dos gritos que se ergueram, do que se disse e continua a dizer-se, em defesa da liberdade de expressão. Na minha mente, mais do que estes clamores da rua, perfila-se o Mestre, que no Jardim sua sangue. E isto dois dias apenas depois de ter chorado sobre a sua cidade, que não era apenas a Jerusalém do monte Sião: seriam todas as cidades santas da Terra e da História. Seria eu próprio, minado por tantas contradições, a braços com o desejo de comprar barata a paz que me negam as paixões, as minhas e as dos outros. Voltando a este último versículo do capitulo 27 de São Mateus: resisto com muita dificuldade à tentação de ver aqui o prenúncio, se não mesmo a raiz das tragédias que ao longo da História marcaram as relações cristãos / judeus, primeiro, depois, cristãos/judeus/muçulmanos. Há quem, para simplificar as coisas e se dispensar de uma reflexão mais aprofundada e responsável, se limite a dizer que se trata de ódio de irmãos. Somos, de facto, irmãos; mas não conseguimos ver que o somos e porque é que o somos. O que acontece principalmente porque muito cedo e com grande velocidade se introduzem no campo, que devia ser comum, elementos de ordem cultural que, uma vez tomados como valores, se não absolutos, como essenciais, se transformam em barreiras dificilmente ultrapassáveis. Pior ainda, quando surgem estruturas, que podem ser apenas étnicas ou culturais, mas se agravam quando são também políticas: sem perdermos muito tempo em grandes análises, estamos em crer que facilitaria muito o diálogo entre cristãos, judeus e muçulmanos, se as pessoas fossem capazes de aprender, primeiro o que é realmente essencial na sua fé, e depois, numa atitude de profundo respeito pelo outro, em fala e escuta, ensinar e aprender esse tal núcleo essencial de cada um. Sem esconder as mágoas deixadas pela história, mas não admitindo que elas condicionem de qualquer modo esse diálogo de irmãos. Porque judeus, cristãos e muçulmanos, do ponto de vista da fé, são realmente irmãos, filhos de Abraão. Aliás, nem judeus, nem cristãos nem muçulmanos, podem considerar-se povo de Deus senão na medida em que são filhos da fé de Abraão. Claro, como diria São Paulo, Teresa Benedita da Cruz e o Cardeal Lustiger, para falar apenas de três grandes figuras de judeus cristãos, qualquer caminhada séria na vivência desta fraternidade tem de desembocar em Jesus Cristo, que é o centro, o ponto de partida e o ponto de chegada de toda a história da Salvação. Mas talvez se esteja a cometer um erro enorme quando, de qualquer dos lados, se tenta cortar etapas: porque todos, judeus, muçulmanos e cristãos, nenhum chega a Cristo sem uma conversão permanente, um esforço sem pausas para ir cada vez mais fundo no caminho da própria fé. Um esforço que, em qualquer dos casos, tem um duplo movimento: abandono do secundário e aprofundamento do essencial.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

REFLEXÃO E PARTILHA

Como a última postagem me saiu muito mal, vou prurar repetila 0 Reflexão e partilha 0 Tem este blogue o título genérico de Reflexões Crepusculares: desde há uns tempos, têm sido tantas, essas reflexões, que acabei por não escrever nenhuma; confesso que, algumas vezes, por preguiça, como diz um dos meus sobrinhos; mas foi também pela dificuldade da escolha, já que me parecia que o facto de serem crepusculares lhes imprimia mais responsabilidade. Agora, não sei por que impulso, talvez por um certo borbulhar da seiva primaveril, que tem também o seu quê de canto do cisne, ainda que pouco romântico e muito desafinado, sinto desejo de partilhar algumas reflexões: assim, como quem procura na escrita estímulo e disciplina para que as ideias se desenvolvam com certa ordem. Não me atrai a polémica: direi serenamente o que penso, mas aceito opiniões contrárias e tenho disponibilidade para esclarecer algum ponto mais obscuro, respondendo, se for caso disso, a quem me ler e tiver a amabilidade de comentar, sobretudo se discorda e pede que desfaça alguma confusão. Não escolho os temas, porque me parece que podemos partilhar qualquer reflexão que nasça do amor à verdade. I Negar a partir de uma dúvida? Como estamos em plenas festas pascais, dou em tom de partilha, uma reflexão com elas relacionada, partindo de um curto poema de Miguel Torga: Dúvida O céptico sorriso da paisagem Quando, funéreo, o sino Avisa o mundo de que vai cerrar-se O véu de trevas da Semana Santa. A seiva é tanta A borbulhar nas vinhas, Voam com tal volúpia as andorinhas Rente ao chão semeado, É tão fresco, ligeiro e perfumado O ar que se respira, Que tem de ser mentira O negro pesadelo anunciado. ( Diário IX: S. Martinho de Anta, 12 de Abril de 1960) Tem de ser mentira O negro pesadelo anunciado. E tem mesmo! Melhor, seria mesmo mentira, caso se tratasse, de facto, de um negro pesadelo anunciado. Não sabemos que sino, nem que toque ouviu o poeta de São Martinho de Anta, para lhe chamar funéreo e dizer que avisa o mundo de que vai cerrar-se o véu de trevas da Semana Santa. Pois a Semana Santa, sobretudo o Tríduo Pascal, como agora se chama, é, segundo a fé dos crentes que os celebram, a maior explosão de luz e vida que podemos encontrar em qualquer liturgia, cristã, judaica ou pagã. Talvez Miguel Torga tenha conhecido a prática anterior a 1951, quando a Liturgia Romana, por razões de ordem prática – já que os ritos de quinta, sexta e sábado tinham de realizar-se de manhã – antecipava o Ofício de Leituras, então designado por Matinas, bem como o Ofício de Louvor, designado por Laudes. Ao conjunto chamava-se Ofício de Trevas, porque se realizava à noite e terminava com uma simulação das trevas que cobriram a terra no momento da morte de Cristo (Cf. Lc 23,44-45; Mc 15,33; Mt 27,45). No entanto, dizer que vai cerrar-se/o véu de trevas da Semana Santa, depois das reformas implementadas por Pio XII, assumidas e completadas, segundo o espírito do Vaticano II, por Paulo VI, é, no mínimo inadequado. Acontece, porém, que não é meu intuito criticar Miguel Torga, um poeta que parece conhecer como nenhum outro o discurso da fé, que o utiliza com especial beleza estética, sem, no entanto, conseguir atinar com ela. Também não sabemos em que medida a procurou de facto: sabemos apenas que toda a sua poesia fala de um desfasamento doloroso entre o seu desejo de luz e a inadequação das janelas que se lhe abrem. Ora é precisamente para falar do drama de uma cultura que se conserva estruturalmente cristã, mas que perdeu por completo, ou quase, os conteúdos da fé cristã, que reinicio estas reflexões, partindo da proximidade das festas pascais. Falei de explosão de luz e de vida, relativamente à Páscoa cristã, que, neste aspecto, não desdiz em nada da Páscoa Judaica, que, como é sabido, celebra a libertação do Povo Hebreu da escravatura do Egipto, com ritos recuperados de antigas celebrações primaveris dos pastores que viviam paredes meias com o deserto. O que acontece é que, segundo uma prática de séculos, talvez milénios, largamente documentada no Antigo Testamento, esses ritos, no contexto da Aliança, adquirem um sentido religioso muito especial e tornam-se proféticos, porque anunciam, não já a libertação de um povo escravizado por outro, mas da humanidade inteira esmagada pelo pecado e suas sequelas. Na Páscoa cristã não há qualquer memória de terrorismo selectivo, como teria sido o caso da matança dos primogénitos dos egípcios, para que o Faraó deixasse partir os Hebreus. E a travessia do Mar Vermelho toma-se como símbolo, mais um entre tantos outros, do Baptismo, Mas celebra-se a memória da imolação do Primogénito de toda a criação, figurado no cordeiro, cujo sangue assinalava as casas dos Hebreus, para que nelas não entrasse o anjo exterminador. Jesus Cristo é, pois, o Cordeiro imolado, que morrendo e ressuscitando liberta os homens da tirania da morte e do pecado, que a anuncia. Haverá modo mais autêntico de cantar com a natureza os sorrisos da Primavera? Mas temos de ser honestos. De facto, para quem vê de fora, e não precisa de estar muito longe, nada disto se torna claro na maior parte dos espectáculos de rua – chamemos-lhes assim, para não os confundirmos com a liturgia genuína – que nas nossas cidades e aldeias assinalam a Páscoa. Assim, talvez tenhamos de dar razão a Miguel Torga e a tantos outros que não conhecem da Pascoa cristã senão um ou outro pormenor folclórico, além do sentimentalismo profundamente deslocado da Sexta-feira Santa. Num texto polémico, que cito sem nenhuma intenção de retomar batalhas inúteis, alguém escreveu há relativamente pouco tempo, que a Igreja não celebrava senão o nascimento e a morte de Cristo. Numa conversa de amigos, um deles afirmou com certa graça que essa pessoa passa distraída trezentos e sessenta e três dias do ano. De facto, a Igreja nunca celebra a morte, mas a vida. E tem muita importância saber que o nascimento de Cristo, em sentido próprio, não se celebra senão no Ocidente, e, mesmo assim, só a partir de meados do século IV. No centro de todas as celebrações está a Páscoa, que, tanto no Oriente como no Ocidente, foi sempre vivida como o início da Nova Criação. Dos tempos novos. Honestamente, porém, dado o que a maioria dos cristãos mostra a quem está de fora, compreende-se esse tipo de comentários. Mas também não ficaria mal aos autores desses comentários procurar com mais honestidade o que é necessário, como e onde se deve procurar.

domingo, 4 de maio de 2014

Reflexão e partilha 0 Tem este blogue o título genérico de Reflexões Crepusculares: desde há uns tempos, têm sido tantas, essas reflexões, que acabei por não escrever nenhuma; confesso que, algumas vezes, por preguiça, como diz um dos meus sobrinhos; mas foi também pela dificuldade da escolha, já que me parecia que o facto de serem crepusculares lhes imprimia mais responsabilidade. Agora, não sei por que impulso, talvez por um certo borbulhar da seiva primaveril, que tem também o seu quê de canto do cisne, ainda que pouco romântico e muito desafinado, sinto desejo de partilhar algumas reflexões: assim, como quem procura na escrita estímulo e disciplina para que as ideias se desenvolvam com certa ordem. Não me atrai a polémica: direi serenamente o que penso, mas aceito opiniões contrárias e tenho disponibilidade para esclarecer algum ponto mais obscuro, respondendo, se for caso disso, a quem me ler e tiver a amabilidade de comentar, sobretudo se discorda e pede que desfaça alguma confusão. Não escolho os temas, porque me parece que podemos partilhar qualquer reflexão que nasça do amor à verdade. I Negar a partir de uma dúvida? Como estamos em plenas festas pascais, dou em tom de partilha, uma reflexão com elas relacionada, partindo de um curto poema de Miguel Torga: Dúvida O céptico sorriso da paisagem Quando, funéreo, o sino Avisa o mundo de que vai cerrar-se O véu de trevas da Semana Santa. A seiva é tanta A borbulhar nas vinhas, Voam com tal volúpia as andorinhas Rente ao chão semeado, É tão fresco, ligeiro e perfumado O ar que se respira, Que tem de ser mentira O negro pesadelo anunciado. ( Diário IX: S. Martinho de Anta, 12 de Abril de 1960) Tem de ser mentira O negro pesadelo anunciado. E tem mesmo! Melhor, seria mesmo mentira, caso se tratasse, de facto, de um negro pesadelo anunciado. Não sabemos que sino, nem que toque ouviu o poeta de São Martinho de Anta, para lhe chamar funéreo e dizer que avisa o mundo de que vai cerrar-se o véu de trevas da Semana Santa. Pois a Semana Santa, sobretudo o Tríduo Pascal, como agora se chama, é, segundo a fé dos crentes que os celebram, a maior explosão de luz e vida que podemos encontrar em qualquer liturgia, cristã, judaica ou pagã. Talvez Miguel Torga tenha conhecido a prática anterior a 1951, quando a Liturgia Romana, por razões de ordem prática – já que os ritos de quinta, sexta e sábado tinham de realizar-se de manhã – antecipava o Ofício de Leituras, então designado por Matinas, bem como o Ofício de Louvor, designado por Laudes. Ao conjunto chamava-se Ofício de Trevas, porque se realizava à noite e terminava com uma simulação das trevas que cobriram a terra no momento da morte de Cristo (Cf. Lc 23,44-45; Mc 15,33; Mt 27,45). No entanto, dizer que vai cerrar-se/o véu de trevas da Semana Santa, depois das reformas implementadas por Pio XII, assumidas e completadas, segundo o espírito do Vaticano II, por Paulo VI, é, no mínimo inadequado. Acontece, porém, que não é meu intuito criticar Miguel Torga, um poeta que parece conhecer como nenhum outro o discurso da fé, que o utiliza com especial beleza estética, sem, no entanto, conseguir atinar com ela. Também não sabemos em que medida a procurou de facto: sabemos apenas que toda a sua poesia fala de um desfasamento doloroso entre o seu desejo de luz e a inadequação das janelas que se lhe abrem. Ora é precisamente para falar do drama de uma cultura que se conserva estruturalmente cristã, mas que perdeu por completo, ou quase, os conteúdos da fé cristã, que reinicio estas reflexões, partindo da proximidade das festas pascais. Falei de explosão de luz e de vida, relativamente à Páscoa cristã, que, neste aspecto, não desdiz em nada da Páscoa Judaica, que, como é sabido, celebra a libertação do Povo Hebreu da escravatura do Egipto, com ritos recuperados de antigas celebrações primaveris dos pastores que viviam paredes meias com o deserto. O que acontece é que, segundo uma prática de séculos, talvez milénios, largamente documentada no Antigo Testamento, esses ritos, no contexto da Aliança, adquirem um sentido religioso muito especial e tornam-se proféticos, porque anunciam, não já a libertação de um povo escravizado por outro, mas da humanidade inteira esmagada pelo pecado e suas sequelas. Na Páscoa cristã não há qualquer memória de terrorismo selectivo, como teria sido o caso da matança dos primogénitos dos egípcios, para que o Faraó deixasse partir os Hebreus. E a travessia do Mar Vermelho toma-se como símbolo, mais um entre tantos outros, do Baptismo, Mas celebra-se a memória da imolação do Primogénito de toda a criação, figurado no cordeiro, cujo sangue assinalava as casas dos Hebreus, para que nelas não entrasse o anjo exterminador. Jesus Cristo é, pois, o Cordeiro imolado, que morrendo e ressuscitando liberta os homens da tirania da morte e do pecado, que a anuncia. Haverá modo mais autêntico de cantar com a natureza os sorrisos da Primavera? Mas temos de ser honestos. De facto, para quem vê de fora, e não precisa de estar muito longe, nada disto se torna claro na maior parte dos espectáculos de rua – chamemos-lhes assim, para não os confundirmos com a liturgia genuína – que nas nossas cidades e aldeias assinalam a Páscoa. Assim, talvez tenhamos de dar razão a Miguel Torga e a tantos outros que não conhecem da Pascoa cristã senão um ou outro pormenor folclórico, além do sentimentalismo profundamente deslocado da Sexta-feira Santa. Num texto polémico, que cito sem nenhuma intenção de retomar batalhas inúteis, alguém escreveu há relativamente pouco tempo, que a Igreja não celebrava senão o nascimento e a morte de Cristo. Numa conversa de amigos, um deles afirmou com certa graça que essa pessoa passa distraída trezentos e sessenta e três dias do ano. De facto, a Igreja nunca celebra a morte, mas a vida. E tem muita importância saber que o nascimento de Cristo, em sentido próprio, não se celebra senão no Ocidente, e, mesmo assim, só a partir de meados do século IV. No centro de todas as celebrações está a Páscoa, que, tanto no Oriente como no Ocidente, foi sempre vivida como o início da Nova Criação. Dos tempos novos. Honestamente, porém, dado o que a maioria dos cristãos mostra a quem está de fora, compreende-se esse tipo de comentários. Mas também não ficaria mal aos autores desses comentários procurar com mais honestidade o que é necessário, como e onde se deve procurar.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Bater com a mão no peito dos outros

Bater com a mão no peito dos outros Há dias, ao ler, segundo as normas litúrgicas, o texto de 2Samuel, 12, 1-17, veio-me à ideia a afirmação de uma grande figura da Igreja que, na altura do PREC, se referiu à moda de acusar pessoas e instituições como uma manifestação quase patológica do bater com a mão no peito dos outros. Assim se substituía a humildade do “mea culpa” tradicional pelo ódio acusatório do “tua culpa” revolucionário. Não é bem a mesma coisa; mas toda aquela metáfora do rei encharcado em crimes, que se enfurece contra o abuso singular de um dos seus súbditos, colhe grande significado na nossa época. Os meios de comunicação - em formato digital, em imagem, em papel, impresso e manuscrito -, os salões, as praças e as ruas, todos os espaços de encontro de pessoas, extravasam de protestos. Ainda bem, responde de forma unilateral o nosso instinto democrático: as pessoas têm o direito de se manifestar, e ninguém discute isso. Nem isso tem nada de condenável. Claro, falamos aqui de manifestações e não de gestos violentos ou de incitamento à violência. Portanto, ainda bem que as pessoas se manifestam: isso significa que vivemos em democracia. Então, que tem a ver a resposta de David a Natan com tudo isto? Porque se classifica de metáfora a narração do livro de Samuel? Sem nos metermos em questões de exegese bíblica, para a qual não tenho tempo nem competência, para mim é evidente que a mensagem contida no texto, ao qual não falta uma certa ironia, mais do que transmitir dados biográficos de um determinado personagem, procura fazer-nos ver como a nossa indignação perante os erros dos outros cresce precisamente na medida em que são ultrapassados pelos que não queremos reconhecer em nós. Aliás, os protestos são muitas vezes uma forma de abafar a consciência, de esquecer as próprias responsabilidades exagerando a dos outros. Deixo apenas dois exemplos da esquizofrenia que neste momento esmaga a sociedade portuguesa: um vai em forma de pergunta, outro refere-se a um facto recente. Por exemplo, já alguém pensou seriamente no que pode significar, para a análise dos aleijões da sociedade portuguesa, a dança das audiências nos canais televisivos? E quando, numa tarde de domingo, em pleno inverno, as estradas se enchem de carros, a caminho do mar, gastando combustível e perturbando o trânsito, só para ver as ondas… não terá isto algo a ver com as raízes de uma crise de que ninguém se sente culpado? Somos como David, até ao momento em que, sem olhar para si, queria castigar severamente o poderoso que roubara a ovelhinha ao pobre. Falta-nos ser como ele, quando se deu conta de que o ladrão era ele. Quantas coisas a emendar na nossa vida, para que os protestos não sejam apenas um vício sazonal!

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014


A fé e a memória


Há vários anos, não me lembro quantos, um colega protestava, em tom de pergunta, contra os muitos processos de beatificação e canonização: Isso para que serve? Perguntava ele.
Como a pergunta vinha em tom de censura, não gastei tempo a dar qualquer resposta; nem esse é o meu propósito neste momento, até porque também a ela responde de certo modo o que diz o Papa no nº13 da Evangelii Gaudium.
Aí, entre outras coisas, pode ler-se, já no último parágrafo: O crente é, fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
 Reparemos bem, que o Papa não diz que o crente é uma pessoa de memória, que se lembra disto ou daquilo, mas «uma pessoa que faz memória».
De facto, “fazer memória” é muito mais do que lembrar-se, ter memória.

Na maior pare das festas e comemorações que se realizam por aí, a lembrar pessoas e acontecimentos do passado, não se faz mais do que tentar avivar a memória, que o tempo vai apagando, reduzindo os contornos emocionais que ajudam a mantê-la viva, durante um certo tempo, até que tudo se apague.
No cristianismo, como em todas as religiões e culturas, também há muitas memórias destas. Umas que se apagam totalmente, outras que são absorvidas, com mais ou menos prejuízo da realidade, pelas tradições culturais. E aí sofrem o tratamento de tudo o que é tradição e não passa de tradição.

Às vezes fica-se apenas com o discurso. Outras nem isso. E quando fica o discurso, acontece com frequência alterarem-se de tal modo os conteúdos, que já não temos nada de cristão por onde lhes pegar.
É a lei da história: não vale a pena lutar contra a inevitabilidade das transformações culturais que nascem da vida das sociedades.

Mas na fé cristã, há coisas que não podem reduzir-se a simples tradições, sob pena de ficarmos com uma fé sem conteúdos, reduzindo o cristianismo a um fenómeno puramente cultural, sujeito aos efeitos do tempo, que inevitavelmente consome tudo o que dele depende.
Basta pensarmos nos sacramentos, que, bem vistas as coisas são o que há de especificamente cristão, já que, pelo menos do ponto de vista formal, tudo o mais se encontra em qualquer outra religião.
De facto, acreditar que determinados ritos, realizados em certas condições, pela comunidade crente, tornam presentes – sem os repetirem, diminuírem ou enriquecerem - os gestos salvíficos de Jesus Cristo, Fundador e Fundamento de toda a estrutura sacramental da Igreja, é algo tão específico da fé cristã, que, por mais que procuremos, não encontramos nenhuma outra atitude religiosa que se lhe iguale.

Daqui podemos concluir que, quando se trata de cristãos, a distinção entre praticantes e não praticantes é pelo menos equívoca e pode carecer totalmente de sentido:
O Papa diz que o crente é, fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
E como faz ele memória senão através dos sacramentos?
De facto Jesus, no momento da instituição da Eucaristia, depois de afirmar que aquele pão e aquele vinho já não é pão nem vinho, mas o Seu Corpo e o Seu Sangue, entregues pela salvação da humanidade, ordena aos Discípulos:
Fazei isto em memória de mim!
Isto é, como que concretizando o gesto pelo qual, no Jordão, deu início aos ritos que, pela acção do Espírito Santo, fazem de realidades cósmicas elementos da história da salvação, ordena que se faça memória permanente desta sua imolação no seio da comunidade por Ele fundada.
Fazer memória, no sentido bíblico e teológico, que é aquele em que o Papa emprega a expressão, é o que acontece, sempre que a comunidade cristã se reúne para celebrar, comunitariamente e com ritos adequados a sua fé comum.
Em face disto, se, como diz o Papa, o crente é, fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória», que sentido terá um cristão, sobretudo um católico, dizer-se não praticante?
Pode legitimamente perguntar-se-lhe, quando se diz, por exemplo, católico não praticante, se não estará a confundir a adesão ao catolicismo com uma atitude puramente cultural, ou, o que seria ainda pior, com a pertença a uma associação de cuja vida e estatutos aproveita o que mais lhe interessa.




segunda-feira, 9 de dezembro de 2013


EVANGELII GAUDIUM

REFLEXÕES SOLTAS

Sem ter a pretensão de ensinar seja o que for a quem quer que seja, pensei que podia oferecer a quem me queira ler e comentar algumas reflexões soltas sobre a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium.

1: O homem é mais do que o homem

 É somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, que somos resgatados da nossa consciência isolada e do egocentrismo. Tornamo-nos plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza para além de nós mesmos, a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte da acção evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?(EG,8)

Começo por adaptar, não propriamente o texto, que aparece sem que nos dêem o original oficial, marca mais negativa do que se poderia pensar. Não adapto o texto, mas a versão portuguesa, que não me parece ter a dignidade dos ensinamentos do Papa:

“Auto-referencialidade”, em meu entender, termo decalcado, mais do que traduzido, é um neologismo escusado: no fundo, o que o Papa quer dizer fica suficientemente expresso com o nosso “egocentrismo”.
“Chegamos a ser completamente humanos”, é um decalque claro, talvez sobre o castelhano. Mas o Papa não fala propriamente de uma viagem, a não ser em sentido metafórico, e isso dir-se-ia, em português correcto, de outro modo.
Aqui trata-se essencialmente de uma transformação interior que, no contexto da doutrina pontifícia, é mais resultado de um acolhimento do que de uma luta, uma caminhada.

Aliás, vai sendo tempo de reduzirmos na nossa mente o espaço dado ao conceito de luta, conquista, que associamos a tudo o que se relaciona com a fé.
Neste campo, parece que o conceito fundamental é o acolhimento: acolhimento de Deus e daqueles que Ele ama.
Na fé, em qualquer dos casos, é sempre Deus que toma a iniciativa: parafraseando um autor francês contemporâneo, antes de acreditarmos em Deus, é Ele que acredita em nós.
Será o que o Papa exprime com a ideia de encontro:

É somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, que somos resgatados da nossa consciência isolada e do egocentrismo.

Isolado e centrado em si mesmo, tomando-se como referência fundamental dos valores que o orientam, o homem não tem saída, nem teórica nem prática, para aquilo que o atormenta.

Podemos dizer a que as interrogações do homem sobre si próprio são tão antigas como o próprio pensamento: desde a mais remota antiguidade que a filosofia e a arte não se cansam de pôr em realce este mistério, que, de facto não encontra resposta nas categorias intramundanas.

Pascal, que neste capítulo repete Eusébio de Cesareia, diz que “o homem ultrapassa infinitamente o homem”, e é partindo daqui que Mgr Albert Arouet, ao apontar algumas das ideologias que têm feito a infelicidade da Europa dos últimos séculos, diz, com toda a propriedade: “Porque o homem que quer definir o homem está sempre a ponto de o limitar. A fé diz-nos que é Deus, o Ilimitado, que vem, não definir, mas pôr o homem perante um horizonte sem limites”.

É outra maneira de expressar o que diz o Vaticano II, num documento que, lido na sua globalidade – coisa que talvez nunca tenha sido realizada devidamente – se conserva plenamente actual:

“Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime. Não é por isso de admirar que as verdades acima ditas tenham n'Ele a sua fonte e n'Ele atinjam a plenitude” (Gaudium et Spes, 22).

Novidade no ensino do Papa?
Claro que não, e é isso que nos dá segurança ao acolhê-lo e dar-lhe seguimento, evitando, naturalmente, a lavagem ao cérebro que tentam aplicar-nos os semeadores de confusão que abundam por aí.
Esses, se nos não acautelamos, farão com que não fiquemos senão com o que eles desejariam que o Papa dissesse, e não com o que ele de facto disse.

E também é verdade que, neste mesmo número da sua Exortação Apostólica, o Papa recorda o que já o próprio Cristo disse aos seus discípulos: Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?
Nas palavras de Jesus: Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios. Recebestes de graça, dai de graça (Mt 10,8).